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AMCP - A Entrevista (de)Vida,
a José Manuel Pereira de Almeida

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A ENTREVISTA (DE)VIDA

José Manuel Pereira de Almeida

A "Entrevista (de)Vida" promovida pela Associação dos Médicos Católicos Portugueses neste mês de dezembro de 2018 foi a José Manuel Pereira de Almeida e centrou-se sobretudo no tema da formação em Medicina.

José Manuel Pereira de Almeida é  médico (FML 1976) especialista em Anatomia Patológica e trabalhou, primeiro no Hospital de Santa Maria / Faculdade de Medicina de Lisboa e, depois de 1991, no IPO de Lisboa.

Ordenado padre em 1986, é atualmente pároco de Santa Isabel, no Patriarcado de Lisboa.

É ainda assistente da Cáritas e da Comissão Nacional Justiça e Paz e o Coordenador Nacional da Pastoral da Saúde.

É professor de Teologia Moral Faculdade de Teologia e vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa.

 

"Não existem questões neutras sob o ponto de vista ético"
José Manuel Pereira de Almeida

 

É padre, médico, professor… Agora também vice-reitor da Universidade Católica.
Quando se fala de educação médica e da adequada formação do médico do séc. XXI, a perspetiva católica, na sua opinião, apresenta alguma especificidade?


Certamente!

Aprendi no liceu com a JEC que era preciso ser católico na escola e estudante na Igreja. Ou seja: que ser católico na Igreja e estudante na escola não mudava a realidade; não se era “fermento na massa”. Que valia a pena procurar trazer as questões vividas na escola (problemas, interrogações, sonhos…) para a comunidade eclesial; e levar Jesus e o seu Evangelho, sobretudo através do testemunho, para a escola.


A minha formação de base é medicina. E, como estou a falar para médicos católicos, valerá a pena sublinhar que a formação de um médico a partir de uma mundividência cristã contrasta, em muito, com a mentalidade corrente. Nós afirmamos que a vida humana é um bem fundamental não arbitrariamente disponível.

Então que dizer, por exemplo, sobre o aborto e a eutanásia?

O quadro dos dados e das estatísticas publicadas nestes anos sobre estas matérias não apresenta questões novas. Confirma a seriedade e a vastidão dos problemas. Parece até confirmar que estes problemas se colocam hoje de modo muito ligado com a mentalidade do mundo mais “desenvolvido”.

A Igreja já se pronunciou com clareza sobre a vida humana antes do nascimento, sobre o aborto, sobre a eutanásia. É preciso considerar as causas que levam a que as suas intervenções pareçam não ter obtido o êxito esperado. É uma questão certamente complexa.
Uma reflexão sobre o valor da vida humana nas culturas contemporâneas, sobre a cultura do útil que contrasta com uma cultura do bem, o facto de, no centro das escolhas e como último critério para si, se encontrar a própria vida e o que a ela está ligado (relativo aos direitos individuais) pode apontar alguns elementos.

Acontece que, neste cenário, se declara como inelutável a fome, a guerra ou as mil formas que pode tomar o sofrimento no mundo: trata-se sempre de defender os projetos pessoais contra os obstáculos que se lhe opõem. Numa perspetiva individualista, os critérios objetivos da hierarquia e da urgência de valores deixam de ter sentido.

Ainda aqui a lógica do gratuito e a da posse se contrapõem: de um lado a abertura ao transcendente, uma cultura do dom e da paz, a cultura da vida; do outro, o beco sem saída a que leva inevitavelmente a confiança nas próprias forças: uma cultura de defesa, de violência e de morte.

Fala-se que a Universidade Católica Portuguesa está interessada em abrir um curso de Medicina

Não se tratará, pois, de formar o médico católico do séc. XXI, mas há hoje o desafio de saber formar bem os médicos necessários para o séc. XXI.

Esta tarefa não competirá exclusivamente a uma universidade católica. Mas a Universidade Católica não pode subtrair-se a este debate. E mesmo a este desafio.
 


E o que nos pode dizer da dimensão ética na formação em Medicina?
 

Todos estão de acordo que é necessário, para se ser médico, ter uma formação em bioética. Mas, percebo a pergunta: que formação? Para ser claro, diria que é preciso uma formação moral. Correspondente a uma experiência ética - unidade pessoal de conhecimento, liberdade e responsabilidade na relação com os outros - que acompanha o conhecimento crescente nas várias áreas de formação e envolve todos os atores da equipa de saúde, no seu diálogo com os doentes e as suas famílias. São todos protagonistas. Vale a pena recordar a diversidade de atores na área da saúde: na vertente da investigação laboratorial, dos ensaios clínicos, dos cuidados de saúde. Claro que não podem esquecer-se os decisores políticos e económicos.

É, portanto, questão de cultura e de mentalidade corrente; de sentido crítico e de criatividade; de conhecimentos científicos; de compreensão prévia e de maturação ética. Só assim será possível construir um ethos partilhado.

É preciso, pois, uma formação em ética fundamental, necessária para se compreender a corresponsabilidade social inerente. Recordo aqui que as relações económicas são também relações humanas; e que é em busca do humano que nos havemos de mobilizar, articulando ‘fins’ e ‘meios’, rumo ao ‘bem-comum’.

Obviamente, encontramo-nos no âmbito biomédico. Com a seriedade e a complexidade dos problemas de sempre, agudizados pelas novas circunstâncias e por novas perguntas: a investigação e as tecnologias hão de ser vistas como instrumentos.

Daí que a eticidade nos surja como exigência. Há que desmascarar preconceitos; por exemplo: nem tudo o que é tecnicamente possível é eticamente lícito; não existem questões neutras sob o ponto de vista ético.

E a questão da interdisciplinaridade?

Ao pensar-se a ética e as diversas ciências biomédicas, pensa-se na complementaridade das diversas competências, mas quando falamos de interdisciplinaridade não basta pôr as disciplinas ao lado umas das outras… Isto para que as decisões possam ser sensatas e prudentes. 

Há que dar também atenção à qualidade humana das relações profissionais. Toda a experiência profissional tem que ser lida como experiência ética.

Por estas razões facilmente se entende que a ética ou a bioética não podem ser reduzidas a unidades curriculares periféricas ou assessórias. Ou mesmo que nucleares, desligadas das outras…

A formação ética tem de ser transversal em cada ano do curso pré-graduado e a reflexão que implica há de poder acompanhar, a par e passo, a complexificação da matéria do percurso dos alunos.

E, é claro, há que cuidar também da formação contínua. Sempre a partir da experiência. Mas isto fica para outra ocasião… 

Em entrevista à Aleteia, o presidente da Federação Internacional das Associações de Médicos Católicos disse que "Se um médico católico se opõe a certas práticas, não é porque seja católico em primeiro lugar, mas porque é uma pessoa, um ser que ouve a voz de sua consciência, iluminada e confirmada pela doutrina da Igreja". Concorda com esta afirmação?

Não utilizaria essas palavras, como facilmente compreenderá pelo que já disse, mas, de um modo geral, claro concordo com a afirmação.

De facto, o que podemos chamar “valores cristãos” são “valores humanos” interpretados - e radicalizados - a partir da nossa pessoal relação com o Senhor Jesus.


Ainda em tempo de Natal, pode deixar uma mensagem aos jovens estudantes que no corrente ano letivo concluirão a formação em Medicina? O que os espera? 

Não sei o que os espera. Essa é a aventura de quem arrisca viver uma vida a dar-se aos outros.

O Natal diz-nos que podemos contemplar o Eterno no efémero, que Deus entra na História, que, em Jesus, o Verbo se faz carne.

E, então, a mensagem que gostaria de deixar aos mais jovens dos meus colegas é a de não desistirem dos sonhos que os levaram a quererem ser médicos. Que se lembrem que são os pequenos gestos que incarnam as suas grandes opções. Que ao decidirem, se decidem a si mesmos. Que as pessoas são mais importantes que os números. E que deem a maior atenção à qualidade humana das suas relações com os outros; com todos, mas sobretudo com os mais vulneráveis.

 Dezembro 2018

 

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